domingo, dezembro 21, 2008

E então chega um dia em que eu não me reconheço...

... E então chega um dia em que eu não te reconheço, um dia que não vem depois do outro.Uma certa noite, fora do tempo.E então um dia eu não me reconheço, e quero o que eu nem sabia que era isso que eu queria...
3 na Massa – Certa Noite

Ela estava sentada à frente daquele carro que não era dela, de um irmão que não é filho da mãe dela, esperando calma e tranquilamente o cigarro que tanto queria fumar naquele agora. Naquele dia.

Cumprimentou duas pessoas que, também de carro, passaram por ali e buzinaram, não sabe se com raiva ou com gentileza, porque não poderia estar parada ali, na fila dupla imaginária em frente àquela padaria.

Naquele dia, ela pensou, tudo tinha sido um tanto díspar. Ela tinha trabalhado numa mesa com goteiras de tortura com um calendário estranho que já lhe apontava dezessete de dezembro daquele ano.

Usou uma roupa por fora do corpo que não usaria naquele dia em que não se reconheceu. Disse coisas que não diria, encontrou gente que não encontraria porque esteve num lugar onde não estaria. Fez um escândalo esquisito ao encontrar pessoa tão querida. Que de tão querida lhe pareceu, de certa forma, estranha.

Ouviu palavras direcionadas doloridas naquele dia que a fizeram chorar, o que não faria normalmente. Não pelas palavras, que sabia bem que eram passageiras. Chorou e chegou a tomar decisões relacionadas àquele que as dispensou sem matutar o tamanho do peso que cairia como uma gota dágua por cima da trouxa de roupas a lavar que ela já carregava. Outro pensamento estranho a ela, porque sabia bem que ninguém neste mundo inteiro sabia da dor, não a do pescoço, mas das costas e da alma que lhe afligia e amassagava aquele coração.

Então chegou o dia em que ela não se reconheceu.

Sentada na direção daquele carro passaram-se mil coisas naquela cabeça que estava naquele corpo estranho. Volta o irmão, o cigarro.

Ela dirigiu muito neste dia. Como se fosse outra pessoa. Dirigia falando pouco, sem gesticular. Dirigia calada. E isso não era dela. Ser assim não era dela. Dirigiu na chuva, à noite, nas ruas completamente desertas como se em outra cidade... Aliás, que cidade seria aquela? Ela não sabia o caminho e foi virando, passando marchas, trocando os pedais e pensando como tinha sido tudo muito estranho.

Como era estranho trabalhar naquele mesmo lugar como se estivesse em outro. E como queria estar em outro canto, outro pedaço. Como aqueles gritos rasgados a incomodavam e quanta vontade tinha de pedir silêncio, nem tanto pelo trabalho a ser feito, mas mais por ela mesmo que não queria ruídos.

E como era estranho ir pra casa sem saber pra onde ir. Não tinha filho naquele dia. Chegou em casa muito cedo para quem não tinha filho naquele dia. Chegou com extrema necessidade de ficar só. Em casa tinha uma tal de uma novena promovida por sua avó. E ali estava sua mãe, de quem queria tanto um carinho, um abraço, um chamego e um chá de morcego. Mas a mãe estava muito cansada. Mas por alguns minutos, também fugindo da tal novena que acontecia com furor na sala, deitou-se perto dela esperando pelo jornal. Durou pouco. Mas foi fato também inédito.

Começou a ler um livro que não tinha começado e gostou. Preocupou-se com o gato, porque será que tanto se lambia? E, virtualmente, combinou com seu meio irmão que dirigiria naquela noite em comemoração a carteira de motorista recém tirada.

E, por isso, estava sentada na direção daquele carro, pensando no tanto que tudo naquele dia tinha sido solitário e diferente. E não se reconheceu.

Dirigiu calada. Pararam depois no boteco de sempre pra comer o bolão de frango de sempre, mas foi muito diferente. Ouviu muito papo de bomba, malhação, 40 cm de braço “frio”, cialis, casos de homem. Não se interessou por aquilo. Mas observava como aquele que era moleque estava tão grande, tão inteligente, tão perspicaz e, de repente, tão responsável por ela.

Não bebeu. Não comeu. Não conversou. Apenas intercessões como avisos de ida ao banheiro. Mas fumou quase todo aquele maço de cigarros de palha com o irmão. Sua garganta doeu e sentiu seu cabelo impregnado daquilo tudo, que de tão diferente, ficou desnorteante.

Acabou aquele dia estranho. Acabou somente o dia. A sensação permanecia.

E no outro dia ainda estava assim. Isso era hoje. E hoje ela ainda pensava se tinha sido de fato um dia em que não se reconhecia ou se algo tinha simplesmente mudado. Se ela tinha provocado alguma mudança no mundo ao seu redor.

Ainda calada, hoje, pensa. Será que este dia seria diferente pra sempre? Ou teria sido somente um dia? O dia em que EU não me reconheço?

By Carol
18 de dezembro de 2008
09:40 h

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