quarta-feira, outubro 15, 2008

A ANA E A NOITE DOS SEUS ANJOS (pedaço)


Enquanto Ana sonhava em fazer coisas que sonhou desde pequena, a vida passava pela janela.

Aos 25 anos, Ana ainda sonhava com as coisas. Coisas tão distantes que jamais poderiam ser concretizadas, assim, em forma de sonho. Aos 25 anos, Ana ainda tinha sonhos cor-de-rosa.

Naquela saleta do Café Lê Fil, local que costuma freqüentar as sextas-feiras tristes de Jazz, de frente com seu Laptop rosa, Ana só via uma página branca com o título negritado: AS NOITES DOS ANJOS.

Ela queria escrever sobre anjos e sobre noites. Mas há quase dois anos ficou ali parada. No título, no laptop rosa, nas noites tristes de Jazz no Café Lê Fil.

Aquele lugar frio e escuro fora seu reduto de todos os dias desde a Faculdade incompleta de Publicidade. E ali Ana começou a vislumbrar os anjos. Nas noites que passava ali no Café, com sua tribo de pseudo-jornalistas, como tinha costume de rotular, amava-os pelas idéias brilhantes e detestava-os pela mediocridade de se bastarem apenas com a idéia brilhante. Pelo menos enquanto se refugiavam ali para discutir idéias tolas, “que nunca virariam um livro” – ela pensava. Aos vinte e poucos anos tudo pode ser demasiadamente fantasioso ou deprimente.

Ana ainda olhava para a tela vazia com título centralizado, irritante e melancólica. Pela porta de vidro fume-marrom, entrou Igor. Moreno quase negro. Mulato gingado. Ana nutria uma paixão secreta por ele. Desde os tempos de menina. Quando ainda tinha a pele limpa de maquiagens, unhas sem esmalte, roupas de menina, cabelo castanho. Era simples e comum. Igor era o mesmo, praticamente. Menino moreno. Moreno quase negro. Mulato gingado.

Igor era o sobejo da turma dos publicitários. Foi um dos que ficou ali. Ainda morava no mesmo condomínio, duas quadras dali e cinco minutos da antiga faculdade. Formou-se, fez estágio na empresa do avô, viajou pela Europa por seis meses e voltou com trabalho garantido. E cheio de experiências. Cheio de coisas novas. E trouxe pra ela aquele laptop rosa, que dizia ser a cara dela, que era amiga de longa data. Uma das poucas amigas para quem ele podia contar tudo. “Tudo mesmo”, repetia.

Igor lhe deu um beijo molhado na testa e sentou-se de frente. Pediu seu chope amentolado e perguntou: “E aí, Anhoquita? Já escreveu a primeira linha?” e soltou sua gargalhada longa de desde sempre. Ana não respondeu. Só levantou a mão para o garçom. Josivaldo, o Jô. Ele trouxe sua caipirinha com adoçante.

As noites estavam ali, todas as sextas-feiras. Podia vê-las pelas janelas embaçadas do Lê Fil. Inevitavelmente estavam ali sempre. Eram as noites. As suas noites. Dos seus anjos. E Igor também. Aliás, quase sempre Igor também estava ali, bem mulato gingado tomando seu chope mentolado e pacientemente olhando para Ana. Isso não a incomodava. O que considerava desagradável era não conseguir pensar em anjos diferentes daquele Igor. Sempre que ele estava ali, daquele jeito, a história mudava de rumo, as personagens mudavam de cor, de gingado. Mas era sempre bom estar ali com ele. Era seguro.

As noites de jazz passavam lentamente enquanto o trombone acompanhava o baixo que acompanhava a caipirinha, que acompanhava o cigarro aceso, que acompanhava o laptop aberto com o título em negrito. E vagarosamente a embriaguez chegava ao ponto cimo da sensatez. Era ali que borbulhavam as idéias. E lhe embaraçava a visão.

Hugo, Mário, Bernardo, Lucas, Elba, Mariana, Débora... Todos ali. Uns balançando a cabeça conforme o balanço da música no fundo, uns discutindo fervorosamente políticas sociais, outros escrevendo em guardanapos o que usariam como ponto de partida para uma matéria sobre moda pós-contemporânea e Ana. Pensando em seus anjos. Como aqueles ali.

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