Uma crítica à imbecilidade do homo sapiens que vive de costas pro espelho e de frente pro passado, de braços cruzados, vestindo suas roupas de menino enquanto passa pela janela o samba popular...
domingo, maio 20, 2007
Verdade inquestionável X Razão absoluta
Brilho do Sol
Eu sou o brilho do sol
Eu sou o brilho da lua
Dou brilho às estrelas
Porque todas me acompanham
Eu sou o brilho do mar
Eu vivo no vento
Eu a brilho na floresta
Porque ela me pertence
O rítimo bailado com violão, flauta e instrumentos de percussão, entrelaça “em corrente” os participantes do culto do Santo Daime no clímax do trabalho no templo. Este trabalho, específico, dançante, por 12 horas seguidas. Homens de um lado, mulheres de outro. Fardados. Não fardados. Transe. Muito frio. Ritual.
A seita do Santo Daime, mistura de tantas outras, mescla elementos de práticas indígenas, africanas e esotéricas. É considerado um trabalho espiritual, que tem como objetivo alcançar o auto-conhecimento e a experiência de Deus ou do Eu Superior Interno.
Para tanto, se utiliza, dentro de um contexto ritual tido como sagrado, da bebida enteógena (que significa: capaz de suscitar a experiência de Deus em si mesmo) sacramental conhecida como Ahyausca. Seus compostos psico-ativos produzem um estado de expansão de consciência. De acordo com a seita, num contexto espiritual apropriado, gera experiências de êxtase místico. Nesses estados de consciência, é que os santos, os avatares e os profetas lançaram o alicerce para muitas das grandes religiões de massa dos nossos dias.
A sua mensagem, que se encontra reunida na forma de coleções de hinos recebidos pelos mestres e adeptos, prega o amor pela natureza e consagra o mundo vegetal e todo o planeta como sendo o cenário sagrado da nossa mãe-terra.
Teve início por volta dos anos 30 na região da Amazônia, e foi fundada pelo cabo da Guarda Territorial: Mestre Irineu, que, antes de ser Mestre Irineu, era tão somente descrito como Raimundo Irineu Serra, um homem negro, alto, forte, que migrou para a região amazônica, inicialmente para Xapuri. Lá se fixou por alguns anos. Conheceu o uso da ayahuasca na região de Cojiba, na Bolívia, através de um companheiro irmão, Antônio Costa.
Suas primeiras experiências deram-se durante seu retiro individual, embrenhado em mata fechada, alimentando-se com dieta especial, instruído por aparições daquela que se identificou como Nossa Senhora da Conceição, Rainha da Floresta. Aguardava o recebimento de uma missão especial para tornar-se um grande curador e iniciador do que chamamos hoje de Santo Daime.
Seu seguidor foi Padrinho Sebastião a partir de 1971, quando de sua morte. Sebastião Mota de Melo, assim como seu antecessor, era dotado de grande carisma e popularidade. Na ocasião da sua promoção como líder, porém, houve conflitos com outros homens de influência, como Leôncio Gomes, filho de um antigo colaborador de Mestre Irineu. Padrinho Sebastião, entretanto, foi o quem, devido à confiança que obtinha dos seguidores da seita, foi considerado o fiel sucessor do Mestre, proclamador da doutrina do Santo Daime.
A doutrina daimista é segmentada na realização de vários tipos de trabalhos. Os Hinários são festejos comemorativos de certos dias santos, aniversários dos padrinhos ou celebrações de comunhão e fraternidade. A Concentração é realizada nos dias 15 e 30 de cada mês e tem duração menor, em relação a outros cultos. Acontece, na maior parte do tempo, com as luzes apagadas e em completo silêncio. A Missa é o mais solene dos ritos do Daime. É a missa para os mortos. Os trabalhos de Cura mantêm-se bastante fiéis à doutrina do Mestre Irineu, que era, inclusive, conhecido pelo seu poder de cura. Nestes trabalhos encontra-se a maior variação ritualística na preparação do chá. O Feitio é o mais fundamental dos cultos da seita. É o nome dado pelos daimistas ao processo de preparo da bebida. É um processo trabalhoso e desgastante física e psicologicamente. Implica em privações antes, durante e depois do processo, que é demorado. É separado por funções, mas os membros envolvidos permanecem quase o tempo todo concentrados na sua função e conversam muito pouco.
Roberto da Mata em seu livro “O que faz o brasil, Brasil?”, disse que nas festas da ordem, como os rituais religiosos, diferentemente das festas carnavalescas, predomina o comportamento marcado pela contrição e pela solenidade, concretizado pelas contenções corporais e verbais. Segundo o autor, estas são formas de promover a uniformidade e obediência daqueles, fiéis ou servidores, em prol de assegurar o respeito, uma vez que a contenção do corpo significa a liberdade do espírito.
Os cultos ritualísticos do Daime traduzem bem a teoria de Da Mata: Dieta preparatória por três dias antes e três dias depois dos trabalhos, com restrições como carne vermelha e álcool. Não é permitido chegar atrasado nem sair mais cedo dos cultos. Os fardados são aqueles doutrinados e responsáveis manter o pleno cumprimento dos ensinamentos da seita, orientar e servir como exemplo aos não fardados. Os “fiscais” são responsáveis pela ordem durante o culto. Observam o tempo todos os participantes, auxiliam, orientam e, muitas vezes, corrigem atitudes inadequadas. Fila indiana para tomar o chá sagrado em copo transparente. Mulheres sempre de saia abaixo do joelho, homens sempre de calça comprida. Elas de um lado do templo e eles do outro. Não se misturam. Ninguém de vermelho ou preto. Bailados à direita e à esquerda. Ritmo constante, mesa de centro, estrela de David no teto, pernas e braços nunca cruzados, local sempre inserido no contexto natureza. “O culto é o resultado de um processo de sincretismo envolvendo elementos de formações sociais rústicas e urbanizadas” (Edward MacRae, “Guiado pela Lua – Xamanismo e uso ritual da Ayahuasca no culto do Santo Daime”, Editora Brasiliense, 1992).
Durkheim dizia do poder do sagrado como poder que permite distinguir o mundo diário, com suas rotinas automáticas tendenciosas à inércia e indiferenciação.
Na sociedade que Giddens chama de “sociedade marcada pela compulsividade”, onde as pessoas são mais individualistas e, portanto, menos libertas, faltam espaços seguros, crenças, por assim dizer, não colocadas á prova.
Tudo é produto e tudo é questionável. Como tudo é questionável, tudo é transformado. E como tudo é transformado tudo é impermanente. E, portanto, inseguro.
Estes seres humanos enlouquecidos, então, que lutaram e se livraram dos conceitos de outrora, se encontram presos por não terem mais conceitos. Não sabem aonde ir. Esta busca é o que nos leva ao objeto desta matéria: Podemos viver sem uma verdade inquestionável, somente na razão absoluta?
“Tive uma mudança interior que ainda não entendia... Fui embora sem entender nada”. Bernardo Mascarenhas, freqüentador não necessariamente assíduo dos rituais do Santo Daime, conta que sua primeira experiência com a Ayahuasca foi induzida pela curiosidade. Logo no primeiro contato, conta, participou do Trabalho de São João, que iniciou-se às 20 horas de um domingo e terminou às 08 horas da segunda-feira.
“Era muita informação. Me desprendi, mas não estava compreendendo. Achei que ia partir para outro mundo”, momento de total desnorteamento, ao efeito alucinógeno da bebida. Bernardo conta que em pouco tempo sua curiosidade foi interpelada pela busca. Recebeu auxílio de um fardado e começou a entender o “olhar pra dentro, acordar o espírito”.
O que Mascarenhas descreve foi a sua primeira “miração”, provocada pelos efeitos alucinógenos da bebida. O seu estado alterado de consciência, como é comumente tratado.
Daí em diante começou a freqüentar os trabalhos, ler sobre o assunto, pesquisar e a mudar várias coisas em sua vida. Não abandonou por completo sua boemia e nem alça disso para “apologizar” sua crença. Mas admite que, com a compreensão que essas experiências lhe provocaram, passou a canalizar sua energia naquilo que lhe trazia frutos mais positivos.
O livro “Extratos do Guia da Floresta”, explica o conceito dos daimistas quanto à união em templos quando relata que o Padrinho concluiu dos ensinos do Mestre Irineu que eles ficavam ainda mais completos se eles pudessem se reunir solidariamente para prover o bem comum. E acrescenta: “Por essa lógica, a vida comunal se torna o grande laboratório, o território entre o macro e o micro da vida social, o que permite preciosas experiências para a construção de novas células de vida espiritualizada e que possam oxigenar espiritualmente o planeta para o próximo milênio. A comunidade é um convite para uma convivência de trabalho e harmonia e sempre foi a meta de muitos homens santos e visionários.”
Mascarenhas confirmou esta concepção quando começou a entender e fazer parte do trabalho de preparação da bebida e sua manipulação. Começou a freqüentar as reuniões e entender o significado de cada culto, comemoração e passou a participar, efetivamente, dos processos nos quais estava inserido.
O Santo Daime prega que o resultado desse trabalho espiritual interior não é apenas uma propriedade de um alcalóide que inibe uma enzima de um neuro-transmissor cerebral. Não é um fenômeno que pode ser induzido por experiências de laboratório. O trabalho espiritual envolve sistemática transformação pessoal e provas disso no dia-a-dia.
Mascarenhas relata o momento que faz questão de frisar, como CRUCIAL: “Foi quando comecei a entender que, a cada trabalho, eu tinha mais responsabilidades comigo mesmo. Foi um clique”. E um clique causado não pelo chá ou pela seita, mas pela busca incessante e angustiante até então, pelas respostas, pelos porquês da sua existência e do outro. “A gente é que se embola na gente mesmo. As respostas não estão na bebida ou na religião. Estão na PALAVRA. Você não imagina o tamanho do meu alívio quando entendi que Deus não está, necessariamente, lá em cima olhando e julgando, e sim, dentro de nós. Dogmas, sabe? Minha vida foi se transformando. O Santo Daime foi uma ponte que me levou a algo que eu não conhecia”.
A inquietação em relação à falta de valores da sociedade atual levou Bernardo Mascarenhas, assim como a tantos outros, a re-buscar valores incontestáveis para acalmar seu ser, enraizado no rito, mas implantado na razão.
A sociedade atual, consciente dos poderes da ciência, da medicina comum, da liberdade de expressão e de vontades, onde pode tudo versus àquilo que não se questiona, que simplesmente se admite. A divisão pode não ser tão claramente enunciada. Inerente é, a nós, como necessitados do viver coletivo, a aceitação deste universo que o compõe. E este universo, se destrambelhado, afogado em teorias contra, aberto a tudo, centrado na descentralização e individualização, nos causa grande desconforto, onde buscamos conforto?
As religiões, as drogas, a bebida, os exageros (quaisquer que sejam), o fanatismo, entre outros, são meios de busca da verdade inquestionável que, ainda dizemos bem alto, não precisamos dela! Mas recorremos, cada vez mais recorrentemente, aos locais seguros sem julgamentos e onde não precisemos contestar e nem desacreditar de nada. Onde, como no ventre materno, somos porque somos, sem termos que explicar os nossos porquês.
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